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O direito constitucional da saúde e o dever do Estado de fornecer medicamentos e tratamentos.

Introdução

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal começou a definir as regras básicas e os parâmetros a serem adotados para a concessão de medicamentos ou tratamentos de saúde não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nem integrantes do protocolo de alto custo. A questão da “judicialização” da saúde já dura anos e ainda persistirá, em razão da contínua e reiterada omissão do Estado em, efetivamente, garantir a saúde digna dos cidadãos. Neste contexto, pertinente uma reflexão acerca deste dever do Estado, face à Magna Carta de 1988.

O direito à saúde esculpido na Constituição Federal. As faces do direito à saúde

O direito à saúde se insere na órbita dos direitos sociais constitucionalmente garantidos. Trata-se de um direito público subjetivo, uma prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas. In verbis:

“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. (grifos nossos)

Tal preceito é complementado pela lei 8.080/90, em seu artigo 2º:

“A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”. (grifos nossos)

Para uma perfeita análise da questão, imperiosa a própria definição de saúde. Nos dizeres de Henrique Hoffmann Monteiro Castro, a saúde (2005):

“Corresponde a um conjunto de preceitos higiênicos referentes aos cuidados em relação às funções orgânicas e à prevenção das doenças. "Em outras palavras, saúde significa estado normal e funcionamento correto de todos os órgãos do corpo humano", sendo os medicamentos os responsáveis pelo restabelecimento das funções de um organismo eventualmente debilitado”.

O autor mencionado (2005), ainda complementa que a tutela do direito à saúde apresentaria duas faces – uma de preservação e outra de proteção. Enquanto a preservação da saúde se relacionaria às políticas de redução de risco de uma determinada doença, numa órbita genérica, a proteção à saúde se caracterizaria como um direito individual, de tratamento e recuperação de uma determinada pessoa.

Ademais, também é interessante a definição proposta por Hewerston Humenhuk (2002):

“A saúde também é uma construção através de procedimentos. (...) A definição de saúde está vinculada diretamente a sua promoção e qualidade de vida. (...) O conceito de saúde é, também, uma questão de o cidadão ter direito a uma vida saudável, levando a construção de uma qualidade de vida, que deve objetivar a democracia, igualdade, respeito ecológico e o desenvolvimento tecnológico, tudo isso procurando livrar o homem de seus males e proporcionando-lhe benefícios”.

A Lei Fundamental não faz qualquer distinção no que tange ao direito à saúde, englobando expressamente o acesso universal a ações de promoção, proteção e recuperação de saúde, nos âmbitos individual e genérico. Segue-se as linhas traçadas pela Organização Mundial de Saúde, segundo a qual, a saúde se caracteriza como o completo bem estar físico da sociedade e não apenas como a ausência de doenças.

A questão do fornecimento de medicamentos e tratamentos pelo Estado se inclui, obviamente, na faceta de proteção à saúde.

O dever do Estado de garantir o direito à saúde

Uma vez que a saúde se tipifica como um bem jurídico indissociável do direito à vida, é certo que o Estado tem o dever de tutelá-la. Consoante André da Silva Ordacgy (2007):

“A Saúde encontra-se entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano, digna de receber a tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em característica indissociável do direito à vida. Dessa forma, a atenção à Saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais”.

A Constituição Federal, em seu supracitado artigo 196, contém uma norma de natureza programática, demandando complementação legislativa ordinária. Assim, como pondera Henrique Hoffmann Monteiro Castro, (2005) “o Estado assume aresponsabilidade na criação dos serviços necessários à saúde e o faz por via de normas infraconstitucionais”.

Neste contexto, houve a edição da lei 8.080/90, regulamentando o Sistema Único de Saúde, bem como estabelecendo princípios e diretrizes para a saúde em nosso país.

Mediante a criação do SUS, foram definidos os papéis das esferas governamentais na busca da saúde, considerando-se o município como o responsável imediato pelo atendimento das necessidades básicas. Explicita Henrique Hoffmann Monteiro Castro (2005):

“Nesse âmbito, estabeleceu-se uma divisão de tarefas no que tange ao fornecimento de medicamentos, de maneira que o sistema básico de saúde fica a cargo dos Municípios (medicamentos básicos), o fornecimento de medicamentos classificados como extraordinários compete à União e os medicamentos ditos excepcionais são fornecidos pelos Estados. Percebe-se, claramente, a composição de um sistema único, que segue uma diretriz clara de descentralização, com direção única em cada esfera de governo”.

Na realidade, para os cidadãos, deve ser indiferente como o Estado se organiza para promover o direito à saúde. O importante é que efetivamente o assegure. Subsiste o direito das pessoas de exigir que o Estado intervenha ativamente para garanti-lo. Não é passível de omissão.

O Poder Público, qualquer seja a esfera institucional no plano da organização federativa brasileira, não pode se mostrar indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.

A interpretação da norma constitucional não pode se dar no sentido de uma simples promessa inconseqüente. O SUS não deve atuar como uma rede sem sentido, sem compromisso social.

Do dever do Estado de fornecer medicamentos e tratamentos não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde. A “judicialização” da saúde

A precariedade do sistema público de saúde, aliada ao insuficiente fornecimento de remédios gratuitos ocasionou no nascimento do fenômeno da “judicialização da saúde”. Nas palavras de André da Silva Ordacgy (2007):

“A notória precariedade do sistema público de saúde brasileiro, bem como o insuficiente fornecimento gratuito de medicamentos, muitos dos quais demasiadamente caros até paras as classes de maior poder aquisitivo, têm feito a população civil socorrer-se, com êxito, das tutelas de saúde para a efetivação do seu tratamento médico, através de provimentos judiciais liminares, fenômeno esse que veio a ser denominado de “judicialização” da Saúde”.

O caráter programático da regra expressa na Lei Fundamental tem sido complementado pelas decisões do Judiciário, evitando que o Poder Público fraude as justas expectativas nele depositadas pela coletividade.

Ora, em sendo o direito à saúde indissociável do direito à vida, torna-se inconcebível a recusa no fornecimento gratuito de remédios e/ou tratamentos a paciente em estado grave e sem condições financeiras de custear as respectivas despesas.

Complementa André da Silva Ordacgy (2007), que é “inquestionável que esse direito à saúde deve ser entendido em sentido amplo, não se restringindo apenas aos casos de risco à vida ou de grave lesão à higidez física ou mental, mas deve abranger também a hipótese de se assegurar um mínimo de dignidade e bem-estar ao paciente”.

As recentes decisões judiciais determinando o fornecimento de remédios e/ou tratamentos não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde, inclusive a título de tutela antecipada e mediante a cominação de multa diária, tem representado um gesto solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada tem, exceto a própria vida e dignidade. O Estado começou a ser obrigado a fornecer gratuitamente remédios de alto custo que não constam da lista do SUS àqueles que os reclamarem.

A busca de parâmetros para o fornecimento de medicamentos e/ou tratamentos não oferecidos pelo Sistema Único de Saúde

O fenômeno da judicialização da saúde, que se intensificou nos últimos anos, ocasionando a expedição mensal de milhares mandados em todo o país, tornou-se preocupante para o Estado. De acordo com Miriam Ventura (2007), em reportagem publicada pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, a judicialização envolveria a eterna dicotomia entre o individual e o coletivo, sendo que, ao mesmo tempo em que o Judiciário evitaria violações de direito por parte do Estado, favoreceria o individualismo e a noção de que o Sistema Único de Saúde não funciona.

André da Silva Ordacgy (2007) pondera que “os entes públicos muito têm criticado a “judicialização” da Saúde, principalmente sob a alegação de que essa intromissão “indevida” do Judiciário irá acarretar, num futuro próximo, na inoperância total do sistema público de saúde, haja vista os representativos gastos financeiros disponibilizados para a cobertura das decisões judiciais, que consomem uma boa parte do orçamento da Saúde”. E, no mesmo sentido, Morton Scheinberg (2009) assevera que, embora os entes públicos afirmem que o orçamento estaria prejudicado com as liminares concedidas, não se atentam que o imbróglio é causado justamente em razão da excessiva lentidão na incorporação de avanços médicos pelo sistema básico.

A celeuma ganhou grandes proporções e a questão foi, recentemente, enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal.

Semana passada, o Plenário da Corte manteve, por unanimidade, nove liminares concedidas pela Justiça a diversos pacientes para o fornecimento de remédios e/ou tratamentos especiais.

O Pretório Excelso reconheceu a obrigação do Estado em promover a saúde, mas, concomitantemente, aduziu também a impossibilidade do Estado de custear tratamentos e medicamentos ainda em fase experimental pelos laboratórios ou em casos em que não se reste comprovada a inviabilidade da utilização de medicamentos do SUS.

Segundo reportagem de Luiza de Carvalho, quando da negativa dos pedidos liminares, o ministro Gilmar Mendes considerou se tratarem de casos que envolvem os únicos medicamentos eficientes para as moléstias apresentadas e que não são oferecidos pelo SUS, apesar de terem registro na Anvisa. Para ele, o alto custo do medicamento não seria motivo para a recusa no fornecimento e, ademais, os protocolos clínicos do SUS não seriam inquestionáveis, admitindo a contestação pela via judicial.

Por outro lado, visando limitar o fenômeno da judicialização, o ministro Gilmar Mendes ponderou que o Estado não seria obrigado a custear todos os tratamentos e remédios em havendo equivalentes no sistema de saúde brasileiro.

A seu turno, o ministro Ricardo Lewandowski apregoou que o Judiciário deve conter as situações de fornecimento de medicamentos não autorizados pela Anivsa e de tratamentos em fase experimental no país ou exterior.

Noutras palavras, privilegiou-se o direito à saúde, sopesando-se o direito individual com o direito coletivo.

Conclusões

O Estado tem o dever de assegurar efetivamente o direito à saúde a todos os cidadãos, como corolário da própria garantia do direito à vida. A Constituição Federal, em seus dispostos, garante o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assegurando, portanto, a sua proteção nas órbitas genérica e individual.

A divisão de tarefas entre os entes governamentais e a organização do Sistema Único de Saúde não podem obstaculizar o direito do indivíduo à percepção de medicamentos e/ou tratamentos indispensáveis.

A “judicialização” da saúde se caracteriza como uma alternativa eficaz para conter as omissões do Estado.

O simples fato de um medicamento e/ou tratamento ser caro ou não estar incluído no protocolo do SUS não é justificativa para a sua não concessão.

Todavia, também é razoável o estabelecimento de critérios e parâmetros, haja vista que todo o sistema (e a saúde de muitas outras pessoas) não pode ser colocado em risco em razão de medicamentos experimentais ou mesmo não autorizados pela Anvisa. É louvável a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema.

Bibliografia

CARVALHO, Luiza de. STF começa a decidir regras para custeio de medicamentos.Artigo publicado no jornal Valor Econômico, Caderno Legislação & Tributos. Visualizado no site da Associação dos Advogados de São Paulo. Disponível em http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=7321 Acesso em 17.mar.2010.

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Do direito público subjetivo àsaúde:conceituação, previsão legal e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6783 Acesso em 17.mar.2010.

DALLARI, Sueli. Direito à saúde. Disponível em http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/bib/dallari3.htm Acesso em 17.mar.2010.

HUMENHUK, Hewerstton. O direito à saúde no Brasil e a teoria dos direitos fundamentais. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4839&p=2 Acesso em 17.mar.2010.

ORDACGY, André da Silva. A tutela de direito de saúde como um direito fundamental do cidadão. Disponível em http://www.dpu.gov.br/pdf/artigos/artigo_saude_andre.pdf Acesso em 17.mar.2010.

SCHEINBERG, Morton. Judicialização da saúde, um mal necessário. Artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo”, em 22 de fevereiro de 2009. Disponível em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090223/not_imp328572,0.php Acesso em 17.mar.2010.

VENTURA, Miriam. Judicialização da saúde: a balança entre acesso e equidade. Artigo publicado no Portal do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Disponível em http://www.cebes.org.br/default.asp?site_Acao=mostraPagina&paginaId=134&mNoti_Acao=mostraNoticia&noticiaId=174 Acesso em 17.mar.2010.

Fonte: Portal Conteúdo Jurídico, em 22 de março de 2010. Disponível em http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=151_&ver=578


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